Pesquisadores se baseiam em fenômeno nacional para compreender como a cultura molda o comportamento e a psicologia social humana
Um estudo com participação do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR) sugeriu uma discussão complexa sobre o “jeitinho brasileiro”, argumentando que o fenômeno nacional ajuda a compreender as relações entre cultura e comportamento social em escala global. A publicação foi selecionada para a edição especial da revista Personality and Social Psychology Review, um dos principais periódicos científicos na área da psicologia internacional. ,.
Cultura e psicologia: um desafio universal
A psicologia social sempre buscou entender até que ponto certos comportamentos humanos são universais ou moldados pelas particularidades culturais. No entanto, essa tarefa não é simples. Durante décadas, a área enfrentou críticas sobre a baixa diversidade cultural de suas amostras (que são, em maioria de países ocidentais desenvolvidos) e a dificuldade de replicar descobertas importantes, em parte porque muitos modelos ignoravam fatores sociais e históricos.
Estudos transculturais têm revelado tendências gerais, mas ainda falham em oferecer explicações profundas sobre como diferentes culturas reorganizam comportamentos universais para lidar com seus próprios contextos. Nesse cenário, o jeitinho brasileiro surge como um exemplo revelador de como aspectos psicológicos podem ganhar formas únicas de acordo com as necessidades locais.
O programa de pesquisa sobre o jeitinho
O artigo Contextualising Social Psychology Through Cultural Syndromes: The Case of Brazilian Jeitinho é fruto de quase duas décadas de investigações realizadas por pesquisadores de diferentes áreas, como antropologia, sociologia, economia, direito e psicologia. O objetivo foi compreender o jeitinho não apenas como uma prática social brasileira, mas como uma “síndrome cultural”: um conjunto de comportamentos significativos que emergem em contextos específicos.
“Nosso principal objetivo é ampliar a discussão sobre o jeitinho. Existe uma síndrome do vira-lata no Brasil, em que muitas pessoas têm uma visão negativa sobre o país. O jeitinho muitas vezes também entra nessa discussão como um fenômeno negativo, mas é importante destacar que ele é uma expressão cultural brasileira que ajuda a sobreviver em adversidades, então é funcional de certa forma. Além de que há aspectos positivos do jeitinho também, como altruísmo, ajuda a terceiros, criatividade, etc. Em seu conjunto, ele reflete uma história complexa de colonização, exploração e imposição cultural”, explica o cientista comportamental do IDOR e um dos líderes da pesquisa, Dr. Ronald Fischer.
A equipe de Fischer vem combinando métodos qualitativos e quantitativos para obter dados relevantes sobre o jeitinho brasileiro. A pesquisa incluiu entrevistas etnográficas, análises históricas, experimentos, estudos de longo prazo e até mesmo a criação de questionários personalizados para o jeitinho, que ajudam a identificar padrões de comportamento relacionados ao tema.
Os pesquisadores ainda fizeram uma revisão extensa da literatura disponível sobre o fenômeno, buscando uma integração e comparação com outros fenômenos parecidos no mundo.
Como o Brasil criou o seu próprio jeitinho?
De acordo com os pesquisadores, o jeitinho pode ser entendido como uma forma criativa de resolver problemas em situações restritivas ou burocráticas. Ele envolve três componentes principais: criatividade e habilidade social, possibilidade de enganar ou burlar regras e o alcance de objetivos importantes que seriam difíceis de conquistar de outro modo.
Dentre as dimensões culturais comuns a todas as sociedades, o estudo aponta que o jeitinho é um fenômeno favorecido por fatores culturais do Brasil, como:
Não à toa, o jeitinho aparece tanto em práticas vistas como positivas, como a simpatia e a criatividade, quanto em formas negativas, como a malandragem e até a corrupção. Mas apesar de o jeitinho ser brasileiro pela conjunção de fatores nacionais que o favorecem, isso não significa que em outros países não existam fenômenos culturais correlatos.
Jeitinho chinês, árabe e russo?
Pois é, os líderes do estudo informam que ter um jeitinho não é como a paçoca ou o brigadeiro, uma coisa exclusiva do Brasil. Fenômenos semelhantes ao jeitinho existem em outras culturas.
Na China, fala-se em guanxi, um networking informal marcado por compromisso de longo prazo com os membros de uma rede, envolvendo troca de favores e apoio mútuo. Já no México, o acordo informal de “uma mão lava a outra” é chamado de palancas.
No Oriente Médio, existe o wasta, um similiar ao svyazi, na Rússia, ou ao pituto, no Chile, todos conceitos próximos do popular nepotismo, do “QI” (quem indique), ou até do suborno. Todos comuns a diversas culturas.
Embora menos complexos e multifacetados como o jeitinho brasileiro, todos eles envolvem a habilidade de contornar normas para alcançar objetivos, mas cada um possui nuances próprias ligadas às tradições sociais e política de cada país.
O que esse estudo revela para a psicologia global
Os pesquisadores defendem que síndromes culturais, como jeitinho, ajudam a construir uma psicologia mais contextualizada e universal. A proposta é enxergar traços psicológicos básicos como “blocos de Lego”, que podem ser recombinados de formas únicas em diferentes culturas.
“Eu acredito que esse é o aspecto mais inovador da nossa pesquisa. Na compreensão da sociedade humana existem os extremos do relativismo, em que cada cultura é única e não pode ser comparada, e do universalismo, em que no fundo existe uma base única para justificar qualquer desenvolvimento social. Entender esse resultado como algo modular é criar uma ponte entre esses sistemas, uma forma diferente de explicar as diferenças culturais nas ciências sociais”, defende Fischer.
A pesquisa aponta ainda que, para combater os aspectos negativos do jeitinho, medidas anticorrupção baseadas apenas em punições podem ser ineficazes se não atacarem as causas estruturais que estimulam práticas informais. Soluções como simplificar processos burocráticos e ampliar o acesso a serviços podem ser mais efetivas para reduzir comportamentos ilícitos a longo prazo.
Um passo para uma psicologia mais global
O estudo sobre o jeitinho brasileiro demonstra a importância da colaboração entre diferentes disciplinas para compreender fenômenos complexos. Mais do que uma curiosidade cultural, ele se torna uma ferramenta para refletir sobre a interação entre regras sociais, criatividade e comportamento humano.
Ao olhar para o jeitinho, os pesquisadores propõem que a psicologia social avance em direção a um modelo verdadeiramente global, capaz de integrar particularidades locais sem perder de vista os elementos universais que nos conectam como seres humanos.
09.12.2025